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Entrevista com Stuart Hall

Por Isaac Ribeiro | Categoria(s): Eventos e entrevistas | 30/06/2010 às 20:22

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Stuart Hall (Foto: Angus Mills)

Stuart Hall (Foto: Angus Mills)

Entrevista feita por Heloisa Buarque de Hollanda (professora da UFRJ e diretora da Aeroplano Editora e Consultoria) e Liv Sovik (professora da UFRJ e organizadora do livro de Stuart Hall, Da Diáspora: identidades e mediações culturais, Editora UFMG, 2003).

Stuart Hall é hoje, no Brasil, um reconhecidíssimo nome da cultura acadêmica. Um dos fundadores da polêmica “pós-disciplina”, os Estudos Culturais, Hall dirigiu o histórico Centro de Birmingham em seu período mais quente e produtivo. Jamaicano, vive na Inglaterra desde 1951 onde é conhecido como um intelectual engajado nos debates sobre as dimensões político–culturais da globalização, a política nacional e os movimentos anti-racistas. Tem dois livros publicados no Brasil: Identidades culturais na Pós-Modernidade e Da diáspora: identidades e mediações culturais.

Nesta entrevista, Hall fala sobre o impacto de sua condição de imigrante jamaicano em sua produção intelectual, como nasceram os Estudos Culturais, porque não se preocupa em publicar livros, as perspectivas do engajamento do intelectual hoje e como ainda é possível se trabalhar criticamente a globalização.

– Você deixou a Jamaica ainda como estudante e hoje é um dos intelectuais mais importantes da Inglaterra. Imagino que esse deslocamento da colônia para a metrópole tenha marcado seu pensamento e atuação profissional. Isso confere?

Na realidade esta história é crítica para mim. Tudo o que aconteceu a partir de minha decisão de não voltar para a Jamaica definiu meu destino e certamente minhas preocupações intelectuais. Eu saí da Jamaica mais de dez anos antes de sua independência. Toda minha formação foi portanto num cenário colonial. Minha história era a de um menino da colônia que vai para o centro da metrópole, para o lugar dos colonizadores. Essa foi a experiência de todos os escritores, pintores, artistas e intelectuais caribenhos mais importantes que chegaram à Inglaterra nos anos 50/60. Uma experiência diferente do contexto dos anos 70, 80, e 90, das lutas dos negros contra o racismo, na Grã-Bretanha. Minha experiência não foi essa. Foi a de um jovem caribenho com a fantasia colonial sobre a metrópole. Eu tinha lido Wordsworth. Eu sabia que haviam daffodils nos campos, sabia a cor das coisas! O grande choque foi a descoberta da Inglaterra, de sua complexidade, que em muito diferia do imaginário colonial. Já estou na Inglaterra por mais de 50 anos, casei com uma inglesa, meus filhos nasceram na Grã-Bretanha, e hoje vejo um país diferente. Hoje temos uma Inglaterra multicultural, mas minha relação com ela permanece a mesma. Conheço a Inglaterra e os ingleses como a palma de minha mão mas jamais me consideraria um inglês. Sou formado pela relação de subordinação colonial a um Outro, à Grã-Bretanha.

Quanto à Jamaica, é meu país perdido, onde já não me sinto em casa. A Jamaica é o que eu poderia ter sido, é o que poderia ter acontecido. Portanto tenho uma relação muito romântica, muito nostálgica com a Jamaica. Meus amigos que ficaram tiveram experiências fortes como a da independência e das lutas dos anos 70, da transformação da Jamaica numa sociedade negra. Se a Jamaica já fosse uma sociedade negra quando parti, eu nunca teria ficado na Inglaterra. Teria voltado para casa. Sinto que não estou em casa em nenhum dos dois países, o que é, suponho, a causa da minha ênfase na noção de in-betweenness. É por isso que me interesso pelo fenômeno das diásporas, é por isso que me interesso por hibridizações, pelo que constitui a “casa”, para a qual nunca se volta efetivamente.

– Qual seria o paralelo possível entre a diáspora jamaicana e a diáspora afro-brasileira?

Já pensei muito sobre isso. Na realidade falo sobre uma dupla diáspora, uma experiência de dupla subordinação. A primeira relativa à escravidão no engenho, a segunda, relativa à experiência, na metrópole, da discriminação racista e colonial. E estas são duas formas bem diferentes de subordinação. Este tipo de experiência dupla nos torna peritos em deslocamentos diaspóricos. Temos que nos adaptar infinitamente a culturas mais poderosas. Aprendemos alguma coisa com a primeira experiência, que levamos para a segunda que acontece anos depois e para a que acontece agora no contexto da globalização e assim infinitamente.

Pense só como se sentiriam o negros brasileiros de Salvador chegando a Nova York e, não sendo romantizados como “espíritos latinos”, são tratados como migrantes secundários. O que isso faria, como os lembraria da experiência da escravidão. Isso tem sido a experiência de alguns brasileiros que conheço que viveram ou tiveram que trabalhar no estrangeiro, embora não seja uma experiência tão comum quanto o é entre caribenhos.

Think of what Afro-Brazilians from Salvador would feel like if they now went to New York and found themselves not romanticized as the Latin spirit, but treated as secondary migrants. What that would make them recall about the plantation and slave experience. That can be working for a second liberation after the accomplishment of their first. That’s the experience I know of some Brazilians who have had to live or worked abroad etc. especially if they have encountered the new imperial power, but it is not so typical of the experience as it has been in the Caribbean.

– Você foi assistente de Richard Hoggart, quando o famoso e hoje histórico Center for Contemporary Cultural Studies em Birmingham foi fundado e, pouco depois, seu diretor. Como você se sente tendo sido praticamente o “fundador” dos Estudos Culturais, uma disciplina hoje tão polêmica?

Quando criamos o Centro, os Estudos Culturais não existiam e não era nosso projeto criá-los. Procurávamos apenas abrir uma área de pesquisa e estudos críticos. Essencialmente como uma área transdisciplinar. Nunca pensamos em criar uma disciplina que substituísse as outras. É ainda assim que vejo hoje os Estudos Culturais. Necessariamente transdisciplinar. Necessariamente com posições críticas em relação ao que as outras disciplinas fazem ou não fazem ou não podem mais fazer. Acho que os Estudos Culturais são uma área polêmica porque está sempre atenta para o que está se fazendo nas outras disciplinas e que se pode retirar delas para a crítica da cultura e o que nelas deve ser deixado de lado. Não me vejo como o Pai dos Estudos Culturais, eu não criei o Centro. Nós trabalhamos com figuras como Edward P. Thompson, Richard Hoggart e Raymond Williams, mais velhos do que eu, mais Estudos Culturais do que eu… Aliás, até hoje, 20 anos depois, não sinto nenhuma vontade de dizer: “Isto é o que os Estudos Culturais são”. Não sou patriótico em relação aos Estudos Culturais, nem me sinto responsável por eles. Trabalho ruim se faz em todas as disciplinas. Sei dizer o que se faz nessa área de importante, o que está na ponta, o que está abrindo novos campos de reflexão. Os Estudos Culturais não começaram sozinhos. Surgiram relacionados a outros movimentos da época como as políticas de cultura, o feminismo, os estudos multiculturais, sobretudo aos estudos pós-coloniais, enfim, a uma enorme gama de novos trabalhos críticos nas ciências humanas. Vejo os Estudos Culturais como um poderoso fio nessa trama.

– Você começa sua atividade crítica na literatura, na briga com o cânone literário, depois abre para estudos mais gerais sobre cultura e agora vemos um claro interesse seu focado na área das artes visuais. Como foi esse deslocamento de interesses?

Tornei-me um estudante de Letras porque queria ser escritor. Em Oxford, onde me formei, eu odiava o clima de diletantismo literário que reinava por lá me tornei um crítico literário ferocíssimo da linha canônica de F. R. Leavis. Foi aí que comecei a trabalhar a relação entre o texto literário e o contexto histórico e social. Ao mesmo tempo, eu já era um modernista. O que me estimulava como escritor era ler T. S. Eliot e Ezra Pound, ouvir Stravinsky, ver Paul Klee, Picasso. O que me interessava era o modernismo. E em Oxford eu tinha que estudar a língua anglo-saxã da Idade Média e na literatura, com muita sorte, chegava até o século XIX. Foi aí que, lendo F. R. Leavis, o New Criticism americano e evolvendo-me com Raymond Williams e com a crítica social que comecei a me colocar a questão: “este texto se relaciona com o quê?” Comecei a perceber que estudar literatura requeria sobretudo o entendimento de um contexto histórico e cultural mais amplo. Como entender Dickens? A Inglaterra como nação imperial, como país industrial, afinal o que estava no âmago da grande literatura que estudava? Ainda antes de me graduar, já me colocava essas questões. Comecei também a me envolver com jovens autores caribenhos que chegavam a Londres como, por exemplo, George Lamming, V.S. Naipaul. Naquela época eu conheci muitos deles, trabalhei com eles escrevendo um programa de rádio para a BBC, o Caribbean Voices, sobre a literatura no Caribe. Interessava-me muito também pelo que se produzia no Caribe. Quando entrei para a Pós-Graduação, pensei: O que preciso fazer é entender a diferença entre a cultura caribenha, de onde eu vim, e esta outra cultura que produz textos magníficos mas que são estudados de forma isolada, dentro de um cânone. Isso me trouxe de volta para o Caribe. Os Estudos Culturais para mim começaram, portanto, com meu interesse nas culturas diaspóricas do Caribe. Foi aí que deslizei da literatura para a cultura.

Quando realmente me engajei no trabalho com os Estudos Culturais, comecei a estudar a mídia e a escrever sobre imagem e ideologia. Ora, se você se interessa por imagem, se interessa pela fotografia, cinema, pela cultura visual e em quem é portador dessa cultura que é a ponta da cultura contemporânea. Foi o meu interesse pela imagem que me levou ao meu atual interesse pelas artes visuais. E mais recentemente ando trabalhando a primazia do visual no discurso do racismo, porque embora sua estrutura profunda não o seja, sua aparência imediata é uma questão visual, é aquilo que você pode ver. Nos anos 90 comecei a trabalhar com jovens fotógrafos e artistas negros, pessoas que começavam a trabalhar com o cinema negro. Envolvi-me com a Autograph, a associação dos fotógrafos negros e com o Iniva, Institute of International Visual Arts, duas organizações que recebem apoio do governo para dar maior visibilidade ao trabalho dos artistas das minorias e dos artistas com diferentes backgrounds culturais.

– Temos agora no RJ um grande debate sobre a propriedade ou não da instalação de uma franquia dos museus Guggenheim na cidade. Como você vê essa expansão “imperialista” de museus mundo afora?

Curadores em Moscou, Havana e outros lugares vêm questionando a relação entre os países em desenvolvimento a esse circuito milionário onde o trabalho artístico é valorizado, reproduzido, adquire um valor comercial enorme no mercado de arte e se torna produtor de reputações artísticas nos centros reconhecidos do mundo. É muito importante que essa questão esteja em pauta nos lugares onde os países em desenvolvimento de alguma forma estejam se inserindo nesse circuito globalizado.

Não quero ser elitista, não estou tentando menosprezar algo que abre a possibilidade para pessoas que não têm uma educação formal tradicional de experimentar a arte, responder à arte, entrar em contato com a arte. Essa democratização da arte e do fazer artístico é, com certeza, bastante positiva e progressista. Mas o tipo de relação que o termo “lazer” estimula é muito passiva. Os museus se tornaram parte de um circuito fashion. Não produzem desafios nem contestações fortes. Não estou contra o que está acontecendo. Que haja museus! No entanto, se apenas espetacularizam o passado, estão traindo sua missão contemporânea.

– Vamos falar agora um pouco sobre seu novo livro publicado no Brasil, que é o pretexto dessa entrevista, Da Diáspora: identidades e mediações culturais, e que se esgotou em quatro meses, um verdadeiro recorde para uma publicação acadêmica. Antes você também já tinha um best-seller aqui, o Identidades Culturais na Pós-Modernidade. Como você vê esse sucesso e o lugar de seus textos no Brasil?

Antes de mais nada, esse sucesso é tão inesperado quanto incrível. Estou muito feliz com isso. Estive pensando nisso, e talvez esse sucesso se deva ao fato de que o Caribe tem uma relação com as culturais europeias muito parecida com a do Caribe. E esse é o tema subjacente de quase todos os meus trabalhos. No fundo sempre escrevo sobre isso. É do que estou falando quando escrevo sobre a hibridização, sobre a creolização, sobre a diáspora. Creio que, no Brasil, as pessoas se sentem muito tocadas por esse tema.

– Você nunca publica livros de sua autoria. Esta iniciativa tem sido sempre de outros que formam coleções de ensaios seus e publicam. Por que isso?

Porque eu não escrevo livros. Escrevo ensaios. Eu nunca escrevo pensando em publicar. Publico em resposta a convites ou quando alguém me pergunta “você escreveu sobre tal coisa, posso publicar esse texto aqui na minha revista?” Isso acontece porque meus escritos são criados em função de situações concretas, são sempre intervenções. Estão sempre procurando redirecionar uma dada situação. São escritos estratégicos. Então escrevo e publico geralmente em revistas ligadas aos movimentos sociais, culturais ou artísticos ligadas aos temas que trato. Só bem depois é que eles acabam sendo reeditados ou traduzidos e levados para circuitos mais amplos. Não poderia ser assim se tivesse uma carreira de escritor que publica. Por outro lado, se os Estudos Culturais são necessariamente transdisciplinares, eu não sou especialista em nenhum assunto. Quem ia querer ler um livro meu sobre um só assunto? Ainda que tenham um interesse comum, meus escritos são sobre temas muito diferentes. Não escrevi, por exemplo, uma teoria sobre Chris Ofili para seu catálogo. Escrevi sobre arte africana. Depois, a partir de minha participação no programa da Documenta de Kassel, escrevi sobre creolização. Acabei de escrever sobre Tony Blair e o New Labour para a revista Soundings , porque quero intervir na situação da Inglaterra hoje. É assim que sinto o ato de escrever e publicar. E isso, a princípio, não dá livro…

– Qual é papel que restou para o intelectual nos dias de hoje?

Isso sim deveria ser um livro. Creio que ser intelectual hoje é dizer a verdade para o poder. É pensar as consequências do poder, aquilo que o poder não quer tratar, o que compõe o inconsciente do poder. Estes são os intelectuais críticos. Existem também os intelectuais tradicionais, como Gramsci os chamava. Os verdadeiros intelectuais ou são alinhados com o poder, tentam abrir seu caminho no mundo, ou têm uma relação crítica com o poder e precisam testar o poder, interrogá-lo e, sobretudo, expor as consequências despropositais ou inconscientes do poder.

– Como se poderia hoje articular experiência e conhecimento?

Não acredito de forma alguma na objetividade do conhecimento. Mas também não acredito que o conhecimento é simplesmente partidário. Não acredito também que o objetivo do conhecimento seja a vitória do “nosso lado”. Os intelectuais críticos têm que ser melhores intelectuais do que os intelectuais tradicionais. Os tradicionais podem se ligar às instituições estabelecidas, às Universidades, ao Estado, à imprensa, às revistas acadêmicas, aos valores estéticos estabelecidos etc. Os intelectuais críticos têm que saber mais, têm que ser mais competentes, seu trabalho tem que resistir melhor a questionamentos. O que significa que têm que testar seu saber, seus argumentos, sua própria posição, para enfrentar as críticas que fatalmente virão e que podem destruir a eficácia de seu trabalho. O trabalho intelectual para enfrentar os novos tempos tem que ser crítico, resistente, de qualidade e produzir conhecimento novo.

– Como você está vendo a emergência de possíveis novos paradigmas?

Não vejo este momento como uma mudança tradicional de paradigmas, ou seja, a mudança de um paradigma para outro. O que vejo é uma crise geral dos paradigmas, especialmente nas artes e nas ciências humanas e sociais. Faço essa distinção porque não estou vendo nenhum terreno firme por onde estejamos caminhando em direção a paradigmas inteiramente novos. Creio estamos obrigados a nos mover no quadro de uma crise paradigmática contínua. Uma revolução permanente do conhecimento e das séries paradigmáticas. Temos é que fazer o possível para resgatar o conhecimento e a produção de conhecimento e de pensamento, sem a garantia de trabalhar dentro de parâmetros seguros. Estamos numa época de pós-paradigmas. O termo “pós” sempre significa que não estamos ainda em novos patamares. Pós-colonialismo não significa o fim do colonialismo, mas o colapso do velho colonialismo e o movimento em direção a uma nova situação. Pós-modernidade não significa o fim da modernidade, mas a revolução moderna trazida para as ruas, significa a generalização do modernismo na arte e na cultura. Estamos num período “pós”: pós-marxismo, alguns dizem “pós-feminismo” embora eu não saiba o que isso significa, pós-colonialismo, pós-teoria, e, espero, numa pós-nostalgia também.

– O que pode ser feito nessas circunstâncias instáveis? Que instrumentos ainda estão disponíveis para o crítico de cultura no quadro da globalização?

Acho que a globalização coloca questões urgentes. Voltam à tona questões que as teorias da moda descartaram como a economia, o capital, o capitalismo, as forças armadas, as armas de destruição em massa, a religião, o suicídio, fundamentalismos, identidades fechadas. Questões como essas entram de novo em cena e a globalização as agrupa na medida em que produz as articulações do poder hegemônico.

– Você se vê como um teórico, um crítico de cultura ou como um intelectual militante?

Não sou teórico porque não tenho cabeça para isso e nem é meu propósito produzir teoria. Faço um trabalho intelectual teoricamente informado. Meu objetivo é usar a teoria para analisar conjunturas. Não sou um teórico no sentido abstrato. Também não me sinto um intelectual militante. Não aguento mais ir à manifestações políticas, pois não posso mais andar ou ficar em pé por muito tempo. Sou um intelectual ativista no sentido de que eu sempre quis que meu trabalho intelectual marcasse uma diferença, registrasse e compartilhasse debates, fizesse contribuições para mudar uma conjuntura, mudasse as disposições dos interesses ou de forças políticas. Sou um ativista nesse sentido. Sou também um crítico de cultura mas isso parece muito distante do campo de batalha. Nunca estive tão envolvido quanto agora, quando penso na atual conjuntura mundial. Estou pessoalmente, emocionalmente, perturbado por isso. Grito na televisão, faço protesto no rádio, diante das câmeras. Não quero que o debate continue como tem sido até agora. Vejo que as desigualdades entre o Primeiro e o Terceiro Mundos, entre Norte e Sul estão sendo suavemente assimiladas e quero gritar. Não sou uma pessoa de partido político, não sou um político, não sou um jornalista, dependo do meu trabalho intelectual para tornar minha crítica ativa politicamente.

– Seu trabalho sobre as diásporas está de alguma forma ajudando em sua crítica à reprodução das desigualdades no quadro da globalização?

Há uma globalização de cima para baixo, neoliberal, e uma globalização de baixo para cima. Diz-se em geral dos que se opõem à globalização de cima para baixo que são “antiglobalização”. Não sou contra a globalização per se. A interdependência das sociedades é vital, é uma fonte de enorme criatividade, assim como de dificuldades e problemas. Um ponto de grande interesse que vejo como consequência da aceitação da globalização de caráter neoliberal, é o surgimento da necessidade de movimentos de deslocamentos laterais. Hoje, o mundo está cheio de pessoas em movimento, afastando-se de guerras civis, da fome, de doenças, de xenofobismo, da pobreza. Esta é um tipo de globalização informal, ilegal. Esta forma de globalização lateral não é uma questão de poder. Ela é um contrapoder. O poder diria: “fique onde está” exatamente para explorar o baixo custo dessa mão de obra. Para o poder, não faz sentido um paquistanês se mudar para Los Angeles onde vão ter que lhe pagar US$ 50 por dia. Se ele ficar onde está, será pago US$ 2 pelo mesmo trabalho. A migração que criou essa mistura de culturas pelo mundo criou cidades multiculturais, criou novas diásporas mundo afora, vai na contramão da lógica da globalização neoliberal.

Assim a diáspora torna-se um conceito crítico no contexto político da globalização. Dá conta de como é possível que uma cultura sobreviva, estabeleça relações, não se volte para defesas fundamentalistas, e tampouco se perca, tornando-se apenas simulacro e cúmplice do Ocidente. Neste sentido as diásporas são, sobretudo, um extraordinário laboratório cultural onde as tentativas de sobrevivência e as contranegociações são trabalhadas e experimentadas.

Fonte: Blog de Heloisa Buarque de Hollanda

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